quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Um Hamlet Negro na Casa dos Loucos!!! por Sandro Solaz Willig

O que fazer com um clássico da dramaturgia ocidental? Esta pergunta que perturba qualquer encenador contemporâneo foi respondida pelo grupo Caixa Preta de maneira primorosa. “Hamlet Sincrético”, montagem dirigida por Jessé Oliveira e que está em cartaz no Hospital Psiquiátrico São Pedro, trouxe vigor e frescor para o texto shakespeareano a partir de elementos de uma cultura que é, antes de tudo, cênica. A cultura negra afro-brasileira é a voz que profere e dá o tom à montagem em questão. Através da riqueza dos gestos, do ritmo, da dança, do canto e da palavra, Hamlet foi revitalizado através dos olhos do sincretismo. O mito escandinavo que fala da origem do homem moderno europeu, este homem que se impõe a nós e que de algum modo “é” nós, encontra o descendente africano em terras americanas e renasce para contar a história de um homem em conflito com sua própria origem, traído por ela e receoso frente à atitude que deve tomar. Homem que diante da crueldade, prefere a sutileza do símbolo, do teatro, da denúncia encenada... E que acaba, contudo, envenenado por seu próprio verbo!

O grupo ressignificou o mito emprestado pelo autor renascentista, William Shakespeare - que misturava Poética Clássica com Comédia popular, e que era uma espécie de primeiro (pós) moderno em plenos anos 1500 – através de seus próprios meios: a energia dos orixás, do samba, do carnaval e da exuberante tradição africana. Este bravo elenco está empurrando a roda da nossa trajetória mítica, literária e dramática. Seus excelentes atores – com destaque para a tocante interpretação de Glau Barros - narram a história melancólica, angustiada, impulsiva, desesperada e, deste modo, trágica de um herói-atado a partir de um debruçamento cuidadoso e original presente em cada cena. Tudo isso coloca a montagem à altura de um texto que transita por entre os abismos da experiência humana e que vislumbra o que há de contraditório em seus aspectos mais mórbidos e fascinantes.

Finalmente, os excluídos se manifestam!!! Viva a voz dos amordaçados! Libertada, enfim, nesta casa abandonada onde outrora viveram aqueles que não eram tão bem vistos por nós. E, ironicamente, nunca nos esqueçamos da verdade: que somos uma sociedade que carrega em seu seio séculos de escravidão! De dominação desumana. Que bom que o Caixa Preta está tomando as palavras de um gênio desta civilização – que, como todas, produz seus algozes e suas vozes - para alardear a força que eles têm. Que o trabalho de um jovem grupo negro continue crescendo inifinitamente! E que ocupe mais e mais os teatros desta cidade!
ator e diretor teatral formado em Ciências Sociais pela USP; fundou e integrou o Grupo Teatro de Narradores em São Paulo e fez parte da equipe do Projeto Teatro Vocacional da SMC de São Paulo.

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